Almanaqueiras: ou não queiras.

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segunda-feira, 23 de abril de 2018

Estudiosos apontam razões históricas para o preconceito que cerca as línguas maternas.

Em Moçambique, idioma português se mistura com as línguas maternas. 
Em Maputo, capital do país, é comum ouvir conversas que mesclam as línguas oficial e nativas - 

Claudia Collucci

Adotado como língua oficial em 1975, após a independência do país, o português de Moçambique vive o paradoxo de ser considerado pelo governo uma ferramenta de unidade nacional ao mesmo tempo que só é falado por metade da população.

O país africano foi um dos visitados pela Folha para o projeto “O Tamanho da Língua”, que reúne histórias e curiosidades a respeito do idioma português.

Segundo o censo de 2007, 50,4% dos moradores falam português (80,8%, nas áreas urbanas e 36,3%, nas rurais). A maioria, porém, não o considera língua nacional.

O país tem oficialmente 20 línguas maternas. As mais faladas são a macua (26,3%) e a changana (11,4%).

A porta da entrada para o aprendizado do português é a escola. No entanto, quase metade da população (45%) é analfabeta.

Na prática, os moçambicanos consideram o português uma segunda língua, que é bastante influenciada (estruturas gramatical, discursiva e retórica) pela língua mãe.

Em Maputo, capital do país, é comum ouvir conversas que misturam as línguas.

“Se a pessoa não percebe [entende] uma palavra em português, percebe em changana. Então mistura as duas [línguas] para contar uma história”, diz a cantora Xixel Langa, 34, que usa dessa estratégia nas músicas.

Ela conta que, às vezes, mesmo entre os moçambicanos a comunicação apenas em português é difícil. “Além das línguas maternas, temos mais de cem dialetos e muitos sotaques. Eles vão transformando o português falado em cada região.”

O padre Fernando Jeco, 48, que já viajou por todo o país, explica que na região sul as pessoas tendem a nasalar as palavras. Quando falam creche, por exemplo, sai “crenche.” No centro, afirma, é comum trocarem o “t” pelo “d”.

“Em vez de falarem Tete, sai Dede. Já no sul, ocorre a troca do ‘b’ pelo ‘p’. Pancada vira bancada”, diz. Para Jeco, é preciso respeitar e valorizar essas diferentes falas. “Elas criam a beleza linguística, um mosaico cultural.”

Na família do padre, fala-se ronga. Ele aprendeu o português em idade escolar. “Se eu sei que a pessoa fala minha língua, vou querer falar em ronga. É natural. Na hora da aflição, busco expressões na língua materna.”

A professora de linguística Julieta Langa, 59, também aprendeu português na escola. Na sua casa, até hoje fala-se ronga e changana. “O português não é usado como língua de comunicação.”

Ao mesmo tempo, ela se diz encantada pela língua oficial do país. “Foi meu passaporte para a vida.”

CHACOTAS
O professor de literatura Nataniel Ngomane, 56, presidente do Fundo Nacional de Língua Portuguesa de Moçambique, explica que outra situação muito comum é a pessoa falar o português, mas, para reforçar uma ideia, recorrer à língua materna.

“Falo três línguas maternas. Chope, por parte de mãe, xítsua, do pai, e ronda com os amigos. Sinto muito orgulho disso”, afirma.

Não é o que acontece com a nova geração, segundo Ngomane. A diversidade de línguas maternas e dos sotaques, acentos e sonoridades que caracterizam o português moçambicano são motivos de chacota entre os mais jovens.

“Tive uma aluna de Nampula [norte do país] que era vítima de gozação por causa do sotaque pesado, associado aos pobres, camponeses. Passei uma aula explicando que é essa diversidade que enriquece a nossa cultura.”

Muitos jovens também não sabem falar a língua materna. “Têm preconceito, consideram línguas inferiores. Falam mal e porcamente o português e acreditam que é mais bonito falar inglês.”

O serralheiro João Francisco Mafumbe, 24, enxerga um “choque linguístico” entre gerações. “Estamos a ver netos que não conversam com os avós porque não falam a língua materna. E os mais velhos não falam português.”

Entre os jovens de Moçambique, há uma onda de palavras inventadas, que misturam português e inglês. Dois exemplos são o “jobar” (job + trabalhar) = ir trabalhar, e o biznar = vender, fazer negócio (business).

ASSIMILAÇÃO

Estudiosos apontam razões históricas para o preconceito que cerca as línguas maternas. Entre elas, a política de assimilação adotada pelo governo português no período de expansão colonial. O moçambicano só se tornava cidadão pleno se fosse capaz de falar e escrever português.

“Além de aprender a língua portuguesa, os assimilados passaram a comer de faca e garfo e a se vestir como os portugueses, deixando para trás a própria cultura, desprezando a língua materna.”

Embora no país haja movimentos para o resgate das tradições, da valorização da própria cultura, ainda há resquícios desse passado, segundo o professor Ngomane.

“Muita gente ainda tem vergonha da sua cultura, das suas origens. Vejo mulheres preferindo usar perucas feitas com cabelo de gente morta a assumir o cabelo carapinha”, diz ele, que usa penteado rastafári há mais de 20 anos.

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