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sábado, 17 de junho de 2017

"ele veio para esclarecer, não para nos deixar perplexos"

'Freud veio para esclarecer, não nos deixar perplexos', diz Francisco Daudt

MANUEL DA COSTA PINTO

Sigmund Freud posa para o escultor Oscar Nemon, em Viena, em 1931

"A Criação Original", novo livro do psicanalista Francisco Daudt, traz uma declaração de princípios: "A clareza é o ponto fundamental neste livro". O desafio a que se propõe o colunista da Folha é apresentar de modo didático e consistente a teoria psicanalítica, numa reação ao hermetismo de muitos seguidores de Freud (1856-1939).

"Sua escrita era tão clara, acessível, que a única honraria que lhe coube em vida foi o 'Nobel alemão' de literatura, o prêmio Goethe [1930]. Quis fazer jus à intenção do mestre: ele veio para esclarecer, não para nos deixar perplexos", diz Daudt à Folha.

Há, nessa defesa da clareza, um sentido ético e uma crítica à estratégia de poder embutida no serpentário retórico de muitos teóricos, sobretudo Lacan (1901-1981).

"Somos prisioneiros do mito francês de que fala obscura traduz erudição. Sou adepto de Popper, epistemólogo que afirma que uma hipótese deve ser vulnerável a críticas e à refutação para se aferir sua condição de verdade. Em outras palavras, não posso te enrolar se estiver escrevendo claro. Vale para psicanálise, política e economia".

O livro não segue a evolução cronológica do pensamento de Freud. A "teoria dos impulsos", por exemplo, que o vienense modificou até seus últimos escritos, é apresentada em sua forma final.

"Se alguém se dispuser a enfrentar os 24 volumes da obra completa de maneira cronológica, vai demorar horrores para entender a teoria freudiana, vai virar um contemporâneo de Freud, que ia 'acompanhando a novela'. Estamos na posição de pegar o conjunto da obra e rastrear seu sentido."

Contrário a leituras "fundamentalistas", Daudt considera a psicanálise uma "ciência embrionária", sujeita a correções: "Freud foi um cientista, um médico, e a ciência é humilde na busca da verdade. Ele próprio se corrigiu quando disse que não era a neurose que causava angústia, mas a angústia que causava a neurose".

"Abordar seu texto como uma bíblia é um insulto. Se a psicanálise for elevada à categoria de religião, com acólitos submissos, o psicanalista tenderá a fazer o mesmo com seus pacientes: subjugá-los."

Daudt critica ainda o uso de termos como "ego" e "pulsão" em lugar de "eu" ou "impulso", que seriam a tradução direta do estilo vernacular de Freud.

"Essa praga começou com Ernest Jones, seu primeiro tradutor para o inglês, que resolveu envolver sua escrita numa vestimenta pomposa –e corporativa– de termos em latim e grego. Começou aí a doença institucional da psicanálise: o psicanalista servindo a instituição, em vez de seus pacientes; um saber envolto em mistério, para iniciados –o que vai contra o propósito básico da psicanálise, que é corrigir a submissão da criança à cultura e construir um indivíduo autônomo".

Nesse sentido, "A Criação Original" desafia o tabu de que o leitor não deve ler Freud com o intuito de se autoanalisar: "Esse é um ponto em que divirjo de meus 'díspares' (há muito tempo entendi que não tenho pares): quando Freud falou em análise interminável, estava falando da transferência de tecnologia que deve se dar no processo psicanalítico, de modo que o paciente prossiga em processo de autoanálise vida afora".

"A internet qualificou os pacientes para perguntar sobre suas doenças aos médicos. Quero o mesmo para os pacientes de psicanálise! Quero defender o direito do consumidor desse serviço! Quero que tenham boas intuições sobre suas doenças, seus complexos de Édipo, que exijam entender o que o psicanalista lhes diz."

Aliás, o capítulo sobre o complexo de Édipo traz uma contribuição teórica que é fruto da experiência clínica do psicanalista carioca.

"Há no livro uma novidade: o conceito de que o complexo de Édipo não é uma fatalidade absoluta, e sim um dano de tamanho variável na vida dos filhos, causado pela incompetência dos pais em criá-los. Incompetentes todos seremos, pois não existe trabalho mais difícil do que atender na justa medida capacidades e necessidades dos filhos à medida que crescem. Mas, quanto menos incompetentes, menor o dano".

Sob o didatismo de "A Criação Original", portanto, há uma leitura não canonizadora de Freud. Ao expor a formação do aparelho psíquico desde sua fase rudimentar até suas etapas mais complexas, Daudt mostra como pode ser dinâmico, mutável, o enfrentamento desse aparelho com as vivências subjetivas e com o mundo exterior.

A CRIAÇÃO ORIGINAL
AUTOR Francisco Daudt
EDITORA 7Letras
QUANTO R$ 59 (336 págs.)

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